A notícia que irrompeu nesta terça-feira, 10 de junho de 2025, dando conta de que a presidente do Tribunal de Contas do Estado do Acre, conselheira Dulcinéa Benício, determinou o afastamento cautelar do Secretário de Estado de Educação, Aberson Carvalho, não é apenas impactante, é juridicamente inaceitável. Por mais sensacionalista que tenha sido a matéria jornalística exibida no último domingo pelo programa Fantástico, revelando a situação de uma escola rural no município de Bujari, é necessário separar o impulso emotivo do necessário rigor institucional. O Direito não se curva à comoção; submete-se à Constituição.
A decisão proferida de forma monocrática pela conselheira, afastando um agente político nomeado diretamente pelo Chefe do Poder Executivo, invade de maneira inequívoca a reserva de competência do governador do Estado, afrontando o princípio nuclear da separação dos poderes. Segundo a ordem constitucional vigente, apenas o governador pode nomear e exonerar seus secretários (art. 84, inciso I, da Constituição Federal, por simetria aplicável aos estados). Não há qualquer permissão legal para que um órgão de controle externo, ainda que revestido de respeitabilidade técnica, interfira na organização interna do Executivo de forma coercitiva, muito menos por meio de medida cautelar desprovida de processo regular, contraditório e fundamentação legal idônea.

Secretário de Educação do Acre, Aberson Carvalho/ Foto: ContilNet
Os Tribunais de Contas, como é sabido e reiteradamente reafirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, são órgãos de fiscalização auxiliar do Poder Legislativo. Não detêm natureza jurisdicional, tampouco podem se converter em instâncias de punição ou sanção política. Sua competência está delimitada pelo art. 71 da Constituição da República, que prevê a apreciação de contas, a emissão de pareceres, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial, bem como a aplicação de sanções istrativas, como multas e inabilitação para funções públicas, mas jamais o afastamento de titulares de cargos políticos. A Lei Orgânica do TCE/AC (Lei nº 38/1993), em seus artigos 36 e 37, também silencia quanto a qualquer poder de subtrair, mesmo temporariamente, o exercício de função de secretário de Estado. E, onde o legislador se cala, não é dado ao intérprete presumir, muito menos inventar.
O afastamento decretado nesta data é, portanto, um ato eivado de vício insanável: afronta a legalidade estrita, desrespeita o devido processo legal, viola o contraditório, transborda a competência do órgão e envereda por um campo perigosamente político, sob o pretexto da moralidade istrativa. Trata-se de um gesto institucionalmente grave — e, arrisco dizer, populista — que busca agradar à opinião pública em detrimento da juridicidade. Ao invés de fortalecer o controle externo, deslegitima-o, expondo-o à crítica de estar se prestando ao papel de censor político, algo que o texto constitucional expressamente repudia.
A urgência em resolver a situação educacional retratada pela reportagem jornalística não autoriza a prática de atos de exceção. A Constituição não é instrumento de espetáculo, mas pacto de estabilidade. Medidas emergenciais, se necessárias, devem ser tomadas dentro dos contornos da legalidade, com respeito ao contraditório, e sob controle judicial, nunca por decreto istrativo isolado de um conselheiro, mesmo que presida uma corte técnica.
A reação do Governo do Estado, ao acionar sua Procuradoria-Geral para manejar as medidas judiciais cabíveis, é não só legítima, é urgente e fundamental. Afastar um secretário sem base legal ou prévio procedimento contraditório é, em última análise, violar o próprio Estado de Direito. Não há governabilidade possível sob o império da caneta solitária. Se esse precedente prosperar, qualquer titular de pasta poderá ser apeado de sua função ao sabor do noticiário, substituindo-se o princípio da legalidade pelo da conveniência midiática. E isso, convenhamos, não é Direito, é arbítrio.
A lição que nos cabe resgatar neste episódio é a de que a Constituição não ite atalhos, nem permite que a moralidade istrativa se transforme em álibi para o desrespeito às regras do jogo. Os excessos dos bons propósitos são, muitas vezes, mais perigosos que as más intenções.
E o mais inquietante de tudo é perceber que, em pleno 2025, ainda se tenta maquiar o arbítrio com verniz de zelo técnico. Substitui-se o processo legal pela urgência televisiva, o contraditório pela conveniência do furo de reportagem, e o papel de órgão fiscalizador pela ânsia de virar manchete. Transformar o Tribunal de Contas em espécie de corregedoria moral do Executivo é brincar inissível. É a lógica do espetáculo invadindo as instituições, como se o Direito agora tivesse que pedir licença à opinião pública para existir. Não precisamos de justiceiros de toga nem de cruzadas istrativas, afinal o que separa a democracia do arbítrio não é a intenção, mas o limite imposto por um documento chamado Constituição.
*Roraima Rocha é Advogado; sócio fundador do escritório MGR – Maia, Gouveia & Rocha Advogados; Mestrando em Legal Studies Emphasis in International Law (Must University – EUA); Especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Gran); Especialista em Advocacia Cível (Fundação do Ministério Público do Rio Grande do Sul – FMP); Membro da Comissão de Prerrogativas, Secretário-Geral Tribunal de Ética e Disciplina – TED, e Presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/AC.